Ser ou Pertencer, eis a questão-ritual
Você já se deu conta de quais rituais participou, intencionalmente ou não, para se afirmar pertencente a uma identidade coletiva?
Muitos ritos são claras imposições sociais, como na estrutura do filme “Os Iniciados” (88 minutos, 2017, com direção de John Trengove) que, depois de passar por renomados festivais como Berlim e Sundance e representar a África do Sul no Oscar 2018, foi projetado nas telas do Espaço Itaú de Cinema na primeira temporada do Cine-Vivência, sendo trabalhado como dispositivo terapêutico nas semanas que antecederam a pandemia em 2020.
Neste longa-metragem são retratadas cerimônias brutais, para “tornar-se homem”, oriundas das tradições sulafricanas. Os pupilos passam pelas mais variadas provações de virilidade assistidas por um mentor e daí nascem relacionamentos, conflitos rivalidades e amores, entre alguns deles.
O filme choca pela crueza e sobretudo pela contemporaneidade do que é retratado, já que apesar de aparentemente primitivos, os rituais são realizados na atualidade da África do Sul e podem servir como analogias explícitas das dinâmicas psíquicas nas quais homens são criados desde tempos imemoriáveis.
A cinematografia de “Os Iniciados” imprime na tela seu realismo incômodo ao flertar com uma fotografia documental de cores opacas e câmera tensa, como se ofegante o tempo todo ao retratar rituais realizados nos dias atuais mas que em nada se diferem dos mais arcaicos, repetidos há centenas, talvez milhares de anos.
Essa ambiguidade temporal, que também se mostra nas roupas e pinturas ritualísticas misturadas ao figurino contempoeâneo, se soma ao realismo da linguagem para empurrar o espectador diretamente nas vísceras do tema dos rituais e provocar a sensação de estarmos estagnados ou andando em círculos no semeio da cultra patriarcal.
Eventos ritualísticos, nos dia de hoje da chamada cultura ocidental, velados ou explícitos, também podem servir à consciência das escolhas que fazemos; num possível acordo entre o indivíduo e o coletivo.
Como a única coisa permanente na vida é a própria mudança, ritos também podem ajudar a trazer ao consciente essas transições pelas quais passamos o tempo todo.
Você já refletiu o que precisou sacrificar para ser considerado adulto? Ou homem? Ou para ganhar a etiqueta de heterossexual ou ser aceito como homossexual; ou o rótulo de profissional; de “homem confiável” e tantas outras definições que nos confortam? O que você teve que deixar para trás?
Muitos participantes do último Cine-Vivência, que se entregaram às dinâmicas terapêuticas que se seguiram ao longa projetado, apontaram a inocência como um “bem” que perdemos na passagem para a vida adulta.
Quando tomamos consciência dos rituais aos quais somos submetidos (ou nos submetemos) para fazer parte de alguma identidade coletiva dentro do sistema patriarcal, percebemos o quanto tivemos que enterrar também da nossa natureza mais sensível, flexível e vulnerável.
Para a grande maioria, esse é o preço que se paga para ser considerado homem, seja na esfera consciente ou inconsciente. A pergunta mais importante que podemos nos fazer em relação às dicotomias entre coletivo e indivíduo, solidariedade e luta por sobrevivência individual, entre a independência e a sabedoria da interdependência, talvez seja: Como pertencer e ser autêntico ao mesmo tempo?
Esse parece ser um trabalho constante de autodesvelar-se na ambivalência entre a desconfiança do que está evidente e a promoção do que é mais velado. Um jogo permanente entre as individualidades e os organismos coletivos que passa pelos ritos, estejam eles na superfície das consciências ou na base dos icerbergs.
Por exemplo: há tempos ouvimos dizer que os ritos de passagem, aqueles “que transformam meninos em homens”, se perderam em meio às prioridades materiais do mundo moderno. O que antes era celebrado como centro das atenções comunitárias, hoje está eclipsado pela vida individualista. Será?
As sociedades ancestrais levavam bem a sério os atos simbólicos que operavam cirurgicamente no inconsciente de um menino para transmitir a mensagem de que agora ele não depende mais da mãe e deve se tornar um guerreiro (ou, depois da revolução industrial, um provedor) forte e capaz de sacrificar seus sentimentos em prol da tribo (ou da prole).
Na grande maioria das tradições, tais ritos da masculinidade tinham a tônica do sacrifício, algo que visava amputar a faceta da criança que depende e carece, muitas vezes literalmente deixando alguma cicatriz que registre que agora, você garoto, está pronto para ser um guerreiro e deve renunciar às suas carências individuais para matar ou morrer por seu clã.
Mas se engana quem pensa que os rituais acabaram ou ficaram restritos a certas tribos ou culturas arcaicas com suas crismas, bar mitzvahs, refúgios, alistamentos, trotes militares ou tradições da África do Sul, como no filme cirado. Mesmo sem claros propósitos, continuamos produzindo cerimoniais ocultos, disfarçados de normalidade.
Uma das principais feridas do masculino hoje, não é a falta destas cerimônias, como muitos alegam, mas a inconsciência da sua existência inerente ou do que representam, em seus símbolos e consequências individuais ou coletivas.
Uma ida ao shopping pode ser um rito iniciático, por exemplo. Em nossa dinâmica social, sente-se “mais homem” quem tem mais posses. Ou então, um dos lemas da nossa querida sociedade de consumo poderia ser: “O que diferencia os meninos dos homens é o preço ou tamanho de seus brinquedos”.
Um futebol, um bar, um parque, um rolê na quebrada, um churrasco. Tudo isso pode ser rito. Sem juízo de valor, cada experiência com seus símbolos e experiências únicas, o problema da contemporaneidade não é o rito em si, mas nossa ignorância em relação aos efeitos que cada símbolo têm na constituição psíquica de um homem.
Assim como na antiguidade, quando os rituais se baseavam na amputação das fragilidades – em compromisso com o sacrifício das individualidades, para servir ao coletivo tribal; nos rituais contemporâneos, continuamos sacrificando a natureza (emocional? empática? receptiva?) dos meninos em benefício de um coletivo maior, bem maior. Tão maior que se faz invisível aos olhos automatizados: a ordenação e manutenção coletiva do paradigma patriarcal.
A boa notícia é que não precisamos nos resignar ou apostar nossas fichas em outra encarnação para nos tornarmos novos homens. Podemos refazer nossos rituais e, para isso, não é necessário entrar numa seita da nova era, numa rara “confraria de homens em crise” ou num grupo que simula rituais indígenas em busca da ancestralidade perdida.
A Gestalt-Terapia, em sua vertente teatral, também nos ensinou a criar pequenos rituais (ou atos psicomágicos, na reformulação terminológica de Alejandro Jodorowsky) que ajudam a refundar esse novo homem (mais compassivo, integrado, flexível, vulnerável e criativo) que eu quero ser “quando crescer”. Os rituais contemporâneos podem estar nos ares do cotidiano, na vida urbana inclusive. Requerem apenas uma dose de criatividade, a testemunha de outros homens com anseios e valores parecidos e, principalmente, um profundo intento de se reinventar dentro e fora de uma comunidade. Sendo autônomo e ao mesmo tempo pertencendo a uma coletividade.