O trabalho com o masculino até a masculinidade profunda
Nos trabalhos que propomos e nas nossas lives, por vezes enfatizamos a necessidade de resgate do feminino como movimento necessário de alargamento das masculinidades.
A conexão com o feminino tem o potencial de não apenas resolver nossa homofobia (reconciliação com nosso feminino interno), como também nossa profunda misoginia (reconciliação com as mulheres da nossa vida). Como um terceiro aspecto, há também a conexão com o feminino sagrado, como fonte de vida, mãe-terra.
Mas é preciso enfatizar que o trabalho sobre o masculino não termina aí.
Nos anos 60, 70, com a revolução cultural, difusão dos psicodélicos, cultura da paz e do amor, protestos contra as guerras e movimento feminista, muitos homens entenderam a mensagem quanto à necessidade de reconciliação com o feminino.
É um movimento que segue até agora, mas que embora tenha permitido algum grau de consciência sobre o feminino, não fez dos homens, ainda, seres mais livres e completos. Estamos mais amáveis, suaves, agradáveis, sensíveis, ambientalistas; o que é positivo, sem dúvida. Mas ainda não nos sentimentos livres dentro das nossas masculinidades.
Respeitamos a vida, nos conectamos ao universo, mas em que medida temos força para dar vida? É como se não soubéssemos utilizar nossa energia e penetrar a vida fora do paradigma do “macho viril”.
Por não saber como ser homem sem o uso da violência, da dominação, alguns, consciente ou inconscientemente, abrem mão de parte fundamental de suas masculinidades.
A unidade da nossa personalidade – aquilo que perdemos quando criança – não será encontrada no feminino, ainda que se trate de etapa indispensável no caminho.
É preciso ir além, reconectar com o instinto selvagem, a energia básica, espiritualmente radiante. Não se trata da força bruta do macho; mas de ação enérgica, compassiva e resolutiva ao mesmo tempo. Se trata de presença.
Também não se trata de ir ter com a “mais alta consciência”, o guru indiano limpinho vestido de branco, mas sim de algo profundo e ainda sombrio e desconhecido. O movimento é mais para dentro que para cima.
Outro ponto que vale a reflexão: nos parece também necessário problematizar a noção muito disseminada em grupos terapêuticos e rodas de cura, que associa a conexão à terra, à natureza fecunda e à profundidade exclusivamente ao feminino.
Aos homens restaria a conexão com deuses solares, celestiais, heroicos, marcados por sua onipotência, onipresença, absoluta autoridade, frio distanciamento e sofrimento em silêncio. Deuses invencíveis, coléricos, rígidos, patriarcais e guerreiros: Zeus, Cronos, Júpiter, Brahma, Alá, Hércules, Moises, Abrão e o Cristo mártir.
O homem criativo, fecundo, atento, protetor, compassivo, erótico, livre, selvagem, enérgico e presente precisará se valer de outros deuses, estabelecer outras conexões profundas, para refundar sua masculinidade.
Por que ao falar da conexão com a energia oceânica, do fluir, a associamos ao feminino, quanto temos na mitologia Poseidon? Osiris, que em várias pinturas aparece ejaculando um fluido para a boca das pessoas, está associado ao Nilo. Representa a masculinidade mais fluída, cíclica e terrestre, ao contrário da masculinidade rígida, estéril e monolítica.
O feminino, embora indispensável à reconstrução da psique masculina, não é instância última.
A tendência a personificar a terra e a natureza como entidade exclusivamente feminina perpetua o divórcio do homem com sua natureza fecunda, profunda e afirmadora da vida.
Homens que buscam a terra como quem busca o feminino desenvolvem uma relação de filho-amante-vítima com a deusa. Deixemos a feminidade profunda às mulheres, e nos reconectemos com nossa masculinidade profunda.
Onde buscar: Eros (força); Dionísio (natureza, criança interior); Dumuzi e Enki (deuses sumérios); Ogun (o selvagem das florestas); Obatala (deus Iorubá associado às montanhas); Osiris; Orfeo e Pan (música e vida selvagem); Hermes (profundidade).