A (decadência da) Jornada do Herói
Quase ninguém discorda que ‘estórias’ nos conferem identidade e validam o proceder de nossas personalidades, valores éticos e estéticos.
Minha nacionalidade, minha etnia, meu gosto musical, meu gênero, minha ideologia e meus ‘propósitos’ são crenças transgeracionais por mim colhidas e semeadas na cultura que consumo.
Fábulas, bandeiras, ícones, logos e mitos legitimam e induzem comportamentos.
Talvez Joseph Campbell diria que são “as máscaras de Deus” (como no título de sua mais robusta série de livros) que criamos para guiar nosso inconsciente por movimentos que nos conferem sentido à existência.
Se pensarmos no “ser homem” e na “estrutura patriarcal”, por exemplo, fica evidente a importância de melhor pensarmos, ou repensarmos, as histórias que absorvemos a cada momento.
Não me refiro aqui apenas ao cinema, TV, streaming ou à literatura que precede enquanto produto cultural, mas sobretudo a todo e qualquer mísero elemento do universo simbólico que nos rodeia, desde as saudosas estórias que nossos vovôs nos contavam para pegarmos no sono até o último meme ou ‘news’ que nos chegam todos os dias em centemas, e que podem nos tirar o sono.
Mito do herói, melodrama, tragédia, farsa, comédia, dentre outras, são algumas das lentes invisíveis pelas quais se filtra e direciona a experiência de estar vivo, se relacionando com os outros e consigo mesmo.
Mas aonde nos levam esses padrões narrativos? A quem delegamos a guiança do nosso inconsciente?
Você já fez um balanço das estórias que você consumiu e consome desde sempre, o que elas tem em comum, que crenças elas fomentam e como influenciam seus anseios pessoais?
Heróis e vilões; o que faziam eles, como se comportavam; como enxergavam as mulheres e suas próprias emoções por exemplo, quais eram suas ferramentas para derrotar o inimigo (quase sempre projetado externamente)?
Como Gestalt-Terapeutas com a incorrigível mania de trazer tudo para o aqui-agora, em nossos trabalhos promovemos estes questionamentos a partir da presentificação dessas estórias, de modo que possamos sentí-las nos impulsos do corpo e na influência que elas exercem em nossas emoções.
É depois de reconhecer as narrativas dentro de nós que vale a pena elaborá-las intelectualmente pra desvelar de que maneira produtos culturais do nosso passado atuam no nosso automatismo do presente, talvez distantes da nossa consciência.
O mito do herói está mais pop do que nunca. Esta suposta maior consciência mitológica por parte do público consumidor se dá talvez pelo crescente número de estudos acerca dos meios formadores da cultura de massa nas últimas décadas, também pela afirmação do conceito de “storytelling” como ferramenta do mundo corporativo, ou até mais ainda porque, com a onipresença das redes sociais, todos nos tornamos produtores de conteúdo, fomos obrigados a forjar personagens públicos (ou “avatares”) e impelidos a entendermos minimamente de construção de narrativas – esta palavra tão necessária e ao mesmo tempo tão desgastada atualmente.
Mas o “mito do herói”, sistematizado por Joseph Campbell no meio do século passado, em “O Herói de Mil Faces”, já evidenciava a padronização da estrutura narrativa nas histórias milenares que nossos ancestrais contavam em volta da fogueira e seguimos escutando, contando, lendo e assistindo adornadas com roupagens ligeiramente variadas.
Uma das mais célebres frases de Shakespeare dizia que “as situações dramáticas são limitadas”. Ou seja, o maior gênio da contação de histórias, que era também ele mesmo, um reciclador de histórias folclóricas e míticas, já nos alertava no século XVI que não há muito por onde ir, nossa tendência é repetirmos nossos dramas. Como se já tivéssemos uma programação, um dna narrativo humano. Será?
Celebramos esta estrutura do heroísmo como balizadora dos processos psíquicos e sociais de indivíduos (principalmente homens, mas não apenas) ao longo da história pregressa e futura do homo sapiens.
Nos anos 70 do século XX, George Lucas, em “Guerra nas Estrelas” e depois Cristopher Vogler com suas teorias dramatúrgicas na obra “jornada do escritor”, traduziram o estudo mitológico de Campbell para a cultura pop.
De lá pra cá, a fórmula tornou-se um padrão identificável em mais ou menos 90% dos filmes, romances, novelas e séries populares.
Mas você já parou pra pensar como este padrão narrativo influencia sua vida e sob quais valores ele está fundamentado? Vale a pena pensarmos a quem ou a quê delegamos a guiança de nossos inconscientes.
Nesta estrutura, o indivíduo (protagonista), para crescer, deve vencer “o mal” (unidimensional) e se destacar entre os demais. A glória deve ser perseguida a todo custo. Quando o herói é trágico, ele se torna mártir no final e serve de munição simbólica para conflitos ideológicos da “vida real”.
A trajetória do herói tem muitas etapas associadas ao ideário de uma masculinidade que parece em franca decadência diante da ameaça de extinção que sofre nossa espécie (ou o paradigma patriarcal). Vale pensar quais dessas crenças ainda nos conduzem ou ainda nos servem nos dias de hoje.
Será que adianta criarmos a jornada da heroína, lançar “mulheres maravilhas” que servem à mesma fórmula de sucesso individual (o que algumas críticas intelectuais chamariam de feminismo neoliberal) e termos a sensação de que as coisas estão mudando, se a estrutura narrativa e a “moral da história” forem as mesmas?
O binarismo de bem-mal, o sucesso individual, a manutenção das misérias humanas para promover salvadores, o chamado à aventura redentora, a crença na bala de prata libertadora do mundo e tantas outras fantasias que consumimos desde sempre nos servem a função tentadora de nos mantermos ‘forever young’. E para o quê mais mesmo?
A neurociência atesta que atividades do cérebro humano não distinguem sonho de vigília, fantasia de realidade, ficção de notícia. O discernimento está ao encargo da consciência, um item que não é muito valorizado no mercado de novidades global.
Por isso, parece que estamos diante de uma bifurcação, forçados a decidir com quais crenças podemos seguir para o naufrágio ou para o amadurecimento humano.
Ou acreditemos que as histórias são estas mesmas, vetorizadas na competição, na guerra como promotora de progresso, nas idéias de superioridade de uns (umas) sobre outrxs etc., e que só nos cabe reproduzí-las trocando os figurinos, uma saia no lugar de uma calça, um boné no lugar de um capacete etc.. ou ainda cabe acreditar na refundação dos mitos?
O que regularmente se chama de civilização patriarcal está essencialmente dependente das histórias que a sustenta. É possível reescreve-las a partir de sua estrutura ou não?