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Falarsobreísmo

Falarsobreísmo

Estamos falando sobre os benefícios de falar sobre falar, sobre as dificuldades de falar por falar sobre os perigos de só falar sobre e, assim, falar sobre os ideais que nos colocam tão distantes do real de nós mesmos, que só de pensar e falar, já julgamos como respiramos. E assim, só de pensar e falar, será possível matar e morrer pela língua sem nem sentir dor, gosto de remorso ou consciência alguma, nem leve nem pesada. Nenhuma.

À medida em que se proliferam agrupamentos para discutir gêneros, raças ou inúmeras questões de identidade conectadas às emergências contemporâneas, surgem também as críticas vorazes daqueles que estão de fora desses grupos. E é interessante ver como há certa coerência nas críticas e esta se dá pelo chamado “pacto da exclusão”, ou seja, trabalha na lógica do (não) pertencimento, questão tão sensível a todos.

Muitas vezes percebemos, a julgar pelos comentários destilados nas redes sociais, que quem está de fora se une em veneno, sem mesmo saber o que ocorre “lá dentro” ou como é estar literalmente na pele de um membro de determinado grupo ou identidade.

Talvez isso explique porque vemos algumas pessoas, de gêneros diversos, apoiando manifestações (em formato e tom bastante machistas) contra a formação de grupos de homens. Há certo generalismo nas críticas, colocando todos os grupos de homens no mesmo balaio. Isso incomoda quem, como a gente, se dedica a esse trabalho com muita dedicação e ótimas intenções.

Mas acompanhar estas críticas é uma oportunidade para exercitar a escuta e observar o que está sendo dito, mesmo porque muitos argumentos tem lá sua razão de ser.

Como estamos nessa pesquisa das masculinidades há pelo menos cinco anos e já conhecemos um razoável número de grupos de homens, temos que reconhecer algum fundamento em algumas das críticas vociferadas recentemente.

Isso porque, nos muitos grupos que passamos, percebemos a limitação que existe em apenas “falar sobre”. Ou seja, através de belos discursos ou trocas de conselhos supostamente sábios, nós homens perseguimos os ideais do que é ser “um homem consciente” que cria bons filhos, respeita a mulher, tem consciência social etc.., Mas só “falando sobre” pulamos a parte da consciência de si mesmo, do que eu escondo do meu espelho, do que trago no corpo, do que transmuto ou reforço dos meus pais, de como manipulo, seduzo, varro pra debaixo do tapete, não me implico e não me responsabilizo.

Quando eu quero dar um “salto quântico” (ou mágico), partindo da minha inconsciência diretamente aos nobres ideais, sem passar pela desconfortável experiência subjetiva em companhia dos meus fantasmas, das minhas sombras, das minhas máscaras, cara-a-cara com meus lixos e mazelas; eu não faço mais que simplesmente dar de comer ao meu ego, que se sofistica e se torna mais ladino. Me violento com mais ignorância disfarçada e me devolvo à sociedade como um homem de aparência mais limpa, porém, muitas vezes, hipócrita. O pensamento não bate com o discurso, que não bate com o que eu faço, que não encontra eco nos meus sentimentos e assim por diante

Portanto, sem desmerecer uma inicial e primeira serventia do “falarsobreísmo” no exercício do dar-se conta, vale a pena refletir honestamente sobre os perigos de buscar a redenção social ou o alívio superficial de angústias contemporâneas apenas pela via do “falar sobre”. Há muito mais consciência a se buscar para além das teorias e dos ideais.

Porque não é sobre homens, sobre as mães e os pais dos homens, sobre a criança interior, tampouco sobre eu e você, muito menos sobre eles. Não é “sobre” nada.

A nós, homens, sempre foi permitido e estimulado que falemos SOBRE muitos assuntos. A dinâmica das redes parece exigir ainda mais que opiniões e posicionamentos sejam postos sobre a mesa.

Mas quando a demanda é por expressar o univeso interno, em geral, nos calamos. Porque assim fomos ensinados pelo exemplo de referências masculinas ou pela escuta indisposta de outros homens. Aprendemos que esse tipo de silêncio nos protege.

E assim, falamos muito SOBRE tudo, mas muito pouco A PARTIR de nós mesmos.

É comum confundir “opinião” com a voz subjetiva que se declara falível diante das incertezas da vida, ou seja, aquela voz que me coloca como responável por fabricar e carregar tanto minhas pedras quanto minhas pérolas.

A cada opinião que expresso sobre um assunto, me apego um pouco mais à autoimagem e assim me arrisco a dar um passinho pra longe da consciência do que sou em toda complexidade que existe para além da construção de uma identidade pública.

Para nortear nossos trabalhos, a gente sempre bate nessa tecla dos perigos de se “falar sobre” no setting terapêutico, como uma possível cortina de fumaça para não se tomar contato com a experiência (humana, desmasiada humana) dos sentimentos, das dúvidas, sensações e desafios.

Ao longo dos trabalhos com masculinidades, comprovamos o quanto é redentor para homens sair das limitações do “falar sobre” e permitir escutar a si mesmo em sua voz mais autêntica. Que a gente siga abrindo espaços para que possamos nos expressar A PARTIR de nós mesmos.

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